A Evolução do Cânon Bíblico: Do Judaísmo ao Cristianismo
Cânon Bíblico: Origens, Desenvolvimento e Variações
A palavra "cânon" tem origem no termo grego "kanón", que significa "vara" ou "régua", e era usada para designar um instrumento de medida. Ao longo do tempo, o termo adquiriu diversos significados, sempre relacionados à ideia de regra, modelo ou padrão.
Em um contexto geral, cânon pode se referir a:
▪️Regra ou norma: Um conjunto de princípios ou diretrizes que servem como base para algo.
▪️Modelo a ser seguido: Um exemplo clássico ou exemplar que é considerado como padrão de excelência.
▪️Conjunto de obras ou autores: Uma coleção de trabalhos ou criadores que são considerados os mais importantes ou influentes em um determinado campo.
Além disso, o termo cânon é frequentemente utilizado em contextos específicos, como:
▪️Religião: O cânon bíblico, por exemplo, refere-se ao conjunto de livros considerados como sagrados e de inspiração divina.
No contexto religioso, a distinção entre cânon restrito e amplo é crucial para entender as diferentes versões da Bíblia.
▪️Literatura e artes: O cânon literário ou artístico compreende as obras e autores mais importantes e influentes em suas respectivas áreas.
Assim, "Cânon" é um termo multifacetado que se refere a uma coleção de obras consideradas de grande valor, influência e autoritativas.
Cânon Bíblico
Antes de Cristo, os judeus não tinham um cânon fechado como conhecemos hoje. No entanto, suas Escrituras eram amplamente reconhecidas e usadas em diferentes comunidades.
Como mencionado acima, o cânon bíblico é a coleção oficial de livros reconhecidos como inspirados por Deus. O processo de definição foi gradual e variou entre judeus e cristãos.
Cânon do Antigo Testamento
Os judeus tinham diversas escrituras sagradas, mas por volta do século I d.C., o cânon hebraico foi consolidado em três partes, formando o Tanakh:
▪️Torá (תּוֹרָה) Significa "instrução" ou "lei" – Composta pelos cinco livros de Moisés (Pentateuco): Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio.
Considerada a parte mais sagrada da Bíblia Hebraica desde os tempos antigos.
▪️Nevi'im (נְבִיאִים) Significa "profetas" – Dividida em duas partes:
Profetas Anteriores: Josué, Juízes, Samuel (1 e 2) e Reis (1 e 2).
Profetas Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze Profetas Menores (Oséias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias).
Foram amplamente reconhecidos durante o período do Segundo Templo, antes do século II a.C.
▪️Ketuvim (כְּתוּבִים) Significa "escritos".
Uma coleção diversificada de livros poéticos, sapienciais e históricos, incluindo:
Salmos, Provérbios, Jó, Cântico dos Cânticos, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Ester, Daniel, Esdras-Neemias, Crônicas (1 e 2).
Observação:
A ordem dos livros em Ketuvim pode variar ligeiramente dependendo da tradição.
Essa variação na ordem dos livros em Ketuvim é resultado de uma combinação de fatores históricos, textuais e litúrgicos. Embora a ordem possa variar, o conteúdo dos livros permanece o mesmo.
Conclusão da Canonização do Velho Testamento
A tradição judaica considera que a fixação do cânon hebraico foi um processo gradual, concluído entre os séculos I e II d.C. Após a destruição do Segundo Templo de Jerusalém em 70 d.C., a cidade de Jâmnia (Yavne) tornou-se um importante centro de estudos rabínicos. Por volta de 90 d.C., rabinos reunidos ali discutiram a aceitação de alguns livros, como Eclesiastes e Cântico dos Cânticos, mas não há evidências de um concílio formal que tenha estabelecido definitivamente o cânon do Tanakh.
A Torá (Pentateuco) já era reconhecida como Escritura sagrada desde o século V a.C., os Profetas foram amplamente aceitos até o século II a.C., e os Escritos passaram por um período de definição que se estendeu até o século II d.C. Assim, a canonização do Antigo Testamento foi um processo progressivo dentro do judaísmo, influenciado por debates teológicos e contextos históricos, culminando na consolidação dos 39 livros que hoje compõem o Antigo Testamento protestante. Já a versão grega da Bíblia, a Septuaginta, usada por judeus de língua grega, continha livros adicionais, conhecidos como deuterocanônicos (ou anagignoskomena, na tradição ortodoxa).
Ponto Adicional
A Septuaginta começou a ser traduzida quando o cânon hebraico ainda estava em desenvolvimento, e sua composição foi ampliada antes que o cânon hebraico fosse fixado. O judaísmo rabínico acabou rejeitando os livros adicionais da LXX, enquanto os cristãos, especialmente os primeiros que falavam grego, os adotaram.
Critérios Canônicos do Velho Testamento:
O cânon do Antigo Testamento foi formado com base em critérios distintos dos do Novo Testamento, mas igualmente rigorosos. Embora os estudiosos não identifiquem uma lista fixa de critérios, alguns princípios fundamentais guiaram a aceitação dos livros sagrados pelos judeus. Entre os critérios mais aceitos estão:
1. Autoridade Profética – O livro deveria ter sido escrito por um profeta ou alguém reconhecido como portador da revelação divina (Moisés, os profetas, ou figuras inspiradas).
2. Conformidade Doutrinária – O conteúdo do livro não poderia contradizer a Torá ou os ensinamentos já reconhecidos como divinamente inspirados.
3. Uso Litúrgico e Comunitário – Os escritos deveriam ser amplamente aceitos e utilizados na adoração pública e na vida religiosa de Israel.
4. Tradição e Transmissão – A obra precisava ter sido preservada e transmitida fielmente pela comunidade judaica, sem suspeitas de corrupção ou origem duvidosa.
5. Testemunho Interno e Inspiração – O livro deveria demonstrar características internas de inspiração divina, refletindo a santidade e autoridade de Deus.
Cânon do Novo Testamento
Os cristãos primitivos usavam as Escrituras judaicas e os escritos apostólicos (evangelhos, cartas). Até o século IV, d.C., havia consenso sobre a maioria dos livros, mas algumas igrejas divergiam. O Concílio de Cartago (397 d.C.) confirmou os 27 livros do Novo Testamento que usamos hoje.
Alguns Pontos Importantes
▪️As Origens:
Os primeiros escritos cristãos foram as cartas de Paulo, escritas por volta de 20 a 30 anos após a morte de Jesus.
Os Evangelhos, que narram a vida e os ensinamentos de Jesus, foram escritos entre 30 e 70 anos após sua morte.
▪️A formação do Cânon:
As primeiras comunidades cristãs começaram a coletar e usar esses escritos, mas não havia um consenso sobre quais deveriam ser considerados canônicos.
Ao longo dos séculos, diferentes listas de livros do Novo Testamento circularam.
O cânon de 27 livros que usamos hoje foi gradualmente estabelecido, com um consenso geral alcançado por volta do século IV.
▪️O Papel do Cânon Hebraico:
É importante notar que, enquanto o Novo Testamento estava sendo formado, os cristãos já usavam o Antigo Testamento, baseado no cânon hebraico.
A autoridade do Antigo Testamento era reconhecida desde o início do cristianismo, pois Jesus e os apóstolos o citavam como Escritura.
Portanto, enquanto Jesus e seus contemporâneos usavam as escrituras hebraicas (o que viria a ser o antigo testamento para os cristãos), o novo testamento foi um processo posterior de escrita e seleção de livros para compor o que conhecemos hoje.
Critérios Canônicos do Novo Testamento
Cinco critérios foram adotados para determinar a canonicidade dos livros do Novo Testamento:
a) Apostolicidade – O livro deveria ter sido escrito por um apóstolo ou por alguém com ligação direta a um deles, conferindo-lhe autenticidade apostólica (imprimatur apostólico).
b) Universalidade – Quando não era possível comprovar a autoria apostólica, considerava-se o uso e a circulação do livro na comunidade cristã. Para ser aceito como canônico, ele deveria ter ampla aceitação na igreja.
c) Conteúdo Doutrinário – O livro deveria apresentar valor espiritual genuíno. Qualquer indício de ficção tornava a obra inaceitável.
d) Inspiração Divina – O livro precisava conter evidências de inspiração pelo Espírito Santo.
e) Leitura Pública – Apenas os livros que possuíssem características adequadas eram admitidos para leitura pública na igreja. Muitos escritos eram apropriados para leitura particular, mas não podiam ser lidos e comentados publicamente, como ocorria com a Lei e os Profetas nas sinagogas. Essa prática é mencionada por Paulo ao exortar Timóteo: “Dedica-te à leitura pública da Escritura” (1Tm 4:13).
A Fonte da Canonização
A canonização de um livro da Bíblia não significa que a nação judaica ou a igreja tenham concedido autoridade canônica a esse livro. Pelo contrário, significa que sua autoridade já estava estabelecida com base em critérios sólidos e, consequentemente, foi reconhecida e declarada como pertencente ao cânon pelas comunidades judaica e cristã.
A canonização formal serviu mais para delimitar quais livros eram parte oficial das Escrituras e quais não eram, mas a aceitação prática e espiritual desses textos veio bem antes.
Conclusão da Canonização do Novo Testamento
A canonização do Novo Testamento foi oficialmente reconhecida nos seguintes concílios:
▪️Concílio de Roma (382 d.C.), sob o Papa Dâmaso I, que listou os livros canônicos em um decreto importante para a Igreja Ocidental.
▪️Concílio de Cartago (397 d.C.), que reafirmou a mesma lista, consolidando o cânon do Novo Testamento para a Igreja Católica.
▪️Concílio de Trento (1546 d.C.), que formalizou definitivamente o cânon do Novo Testamento, com a Igreja Católica respondendo à Reforma Protestante e reafirmando os 27 livros do Novo Testamento, incluindo os deuterocanônicos.
Consideração Importante:
O Concílio de Hipona (393 d.C.) também é relevante, pois já havia se manifestado sobre o cânon, embora com menos influência que os três concílios citados.
Quantos Cânons Bíblicos Existem?
O número de cânones bíblicos varia conforme a tradição religiosa. Aqui estão os principais:
1) Cânon Judaico (Tanakh) – 24 livros
Equivale ao Antigo Testamento protestante, mas com uma organização diferente.
Não inclui os chamados livros deuterocanônicos.
2) Cânon Protestante – 66 livros
39 livros no Antigo Testamento (equivalente ao Tanakh, mas com outra divisão).
27 livros no Novo Testamento.
3) Cânon Católico – 73 livros
Inclui os 66 livros do cânon protestante.
Adiciona 7 livros deuterocanônicos ao Antigo Testamento: Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, Baruque, 1 Macabeus e 2 Macabeus, além de acréscimos a Ester e Daniel.
4) Cânon Ortodoxo – Variações (76 a 81 livros)
A Igreja Ortodoxa Grega e Russa seguem o cânon católico, mas incluem livros adicionais, como 3 Macabeus e Oração de Manassés.
A Igreja Ortodoxa Etíope tem o cânon mais extenso, incluindo livros como 1 Enoque e Jubileus, totalizando até 81 livros.
5) Cânon da Igreja Assíria do Oriente
Semelhante ao cânon protestante, mas inclui 2 Baruque e a Carta de Jeremias separadamente.
Portanto, dependendo da tradição, há diferentes quantidades de livros aceitos como Escritura inspirada.
Cânon Fechado
Nos tempos de Jesus, o cânon ainda não estava rigidamente definido. A Torá era universalmente aceita, mas os outros escritos variavam em autoridade entre diferentes grupos judaicos:
. Saduceus aceitavam apenas a Torá como Escritura e rejeitavam tradições orais e crenças como a ressurreição dos mortos.
. Fariseus reconheciam a Torá, os Profetas e os Escritos (base do futuro cânon judaico). Também valorizavam a tradição oral, que mais tarde se tornou a Mishná.
. Essênios: Tinham um cânon próprio, incluindo livros bíblicos e textos adicionais (como os Manuscritos do Mar Morto), e rejeitavam o sacerdócio do Templo de Jerusalém.
Alguns Pontos Importantes:
Os essênios rejeitavam o sacerdócio do Templo de Jerusalém porque acreditavam que ele havia se corrompido. Eles viam os sacerdotes saduceus, que controlavam o Templo, como ilegítimos e politicamente influenciados.
Algumas razões específicas para essa rejeição incluem:
1. Corrupção Sacerdotal – Os essênios acusavam os sacerdotes do Templo de práticas impuras e de desviarem-se da verdadeira Lei de Deus.
2. Oposição à Dinastia Hasmoneia – Muitos essênios acreditavam que apenas sacerdotes da linhagem de Zadoque (sumo sacerdote nos tempos de Salomão) deveriam liderar o Templo, mas os hasmoneus haviam assumido o cargo sem essa legitimidade.
3. Pureza Ritual – Os essênios tinham regras rígidas de pureza e acreditavam que os rituais do Templo eram conduzidos de maneira impura.
4. Escatologia – Muitos essênios esperavam um juízo divino que restauraria o verdadeiro sacerdócio e o culto correto no fim dos tempos.
Por essas razões, eles se afastaram do Templo e formaram comunidades isoladas, como a de Qumran, onde preservaram seus próprios textos sagrados e rituais.
Considerações Importantes:
A Mishná é a coleção escrita das tradições orais judaicas, compilada por volta do século II d.C. por Rabi Judá HaNassi. Ela reúne as leis, ensinamentos e interpretações dos rabinos sobre a Torá, organizadas em seis ordens temáticas. A Mishná é fundamental para o Talmud, que expande e comenta suas leis, sendo a base do judaísmo rabínico. Ela abrange temas como leis de pureza, rituais, ética e leis civis.
O Talmud é um conjunto de textos que comenta e expande a Mishná, oferecendo discussões, interpretações e esclarecimentos sobre a lei judaica, ética e prática religiosa. Ele é dividido em duas partes:
1. Gemará: Comentários e análises da Mishná, que discutem as leis e aplicabilidades.
2. Mishná: O texto original, que contém a codificação das tradições orais.
Existem duas versões do Talmud: o Talmud de Jerusalém e o Talmud Babilônico (mais amplamente estudado). O Talmud é central para o judaísmo rabínico, servindo como guia para a vida religiosa e prática cotidiana.
Rabi Judá HaNassi (ou Judá, o Príncipe) foi um líder espiritual e político judaico do século II d.C. Ele é mais conhecido por ter compilado e editado a Mishná, a primeira codificação sistemática das leis orais judaicas. Judá HaNassi desempenhou um papel crucial na preservação e organização da tradição judaica após a destruição do Segundo Templo e a dispersão do povo judeu.
Além de sua contribuição para a Mishná, Rabi Judá HaNassi foi uma figura influente que ajudou a manter a coesão da comunidade judaica na Palestina durante um período de intensas dificuldades políticas e religiosas, incluindo a dominação romana. Ele também era considerado uma figura de autoridade religiosa, e suas decisões sobre questões legais e práticas tinham grande peso.
Sua obra na Mishná permitiu a continuidade do judaísmo rabínico, formando a base para o Talmud e influenciando profundamente o desenvolvimento da lei e da ética judaica.
o Talmud como conhecemos hoje não existia no tempo de Jesus. Como discutido anteriormente, o Talmud é composto pela Mishná e a Gemará, sendo que a Mishná foi compilada por Rabi Judá HaNassi por volta de 200 d.C., ou seja, mais de 100 anos após a morte de Jesus.
No tempo de Jesus, existiam tradições orais e discussões rabínicas que mais tarde seriam registradas na Mishná, mas o Talmud em si ainda não estava formado. O judaísmo do tempo de Jesus era focado na Torá (a Lei escrita) e nas interpretações orais, mas a codificação formal dessas tradições só ocorreria após a destruição do Segundo Templo, como uma maneira de preservar e organizar a lei judaica. Portanto, o Talmud foi desenvolvido após o período do Novo Testamento.
Qual cânon os protestantes usam?
A Igreja Protestante usa o cânon de 66 livros, rejeitando os deuterocanônicos, pois considera que apenas o cânon hebraico foi aceito pelos judeus. Martinho Lutero e outros reformadores do século XVI reafirmaram essa posição, argumentando que apenas o cânon hebraico foi aceito pelos judeus.
Enfim, a Bíblia que conhecemos hoje é fruto de um processo gradual e complexo, com diferentes tradições religiosas influenciando a seleção e organização dos livros sagrados.
Comentários
Postar um comentário